Tudo o que é sólido desmancha no ar

Pode-se ter uma ideia da complexidade e riqueza do modernismo do século XIX, assim como das unidades que alimentam sua multiplicidade, prestando atenção a duas de suas vozes mais distintas: Nietzsche, que é geralmente aceite como fonte de muitos dos modernismos do nosso tempo, e Marx, que não é comummente associado a qualquer modernismo.

Primeiro, Marx, falando um inglês desajeitado, mas convincente, em Londres, em 1856. “As assim chamadas revoluções de 1848 foram apenas incidentes desprezíveis”, ele começa, “pequenas fraturas e fissuras

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na crista seca da sociedade europeia. Mas denunciaram o abismo. Sob a superfície aparentemente sólida, deixaram entrever oceanos de matéria líquida, que apenas aguardam a expansão para transformar em fragmentos continentes inteiros de rocha dura.” As classes dirigentes do movimento reacionário de 1850 dizem ao mundo que tudo está sólido outra vez; porém não está claro se eles próprios acreditam nisso. De fato, diz Marx, “a atmosfera sob a qual vivemos pesa várias toneladas sobre cada um de nós — mas vocês o sentem?”. Um dos propósitos mais firmes de Marx foi fazer o povo “sentir”; eis por que suas ideias são expressas através de imagens tão intensas e extravagantes — abismos, terremotos, erupções vulcânicas, pressão de forças gravitacionais —, imagens que continuarão a ecoar na arte e no pensamento modernista do nosso tempo. Marx continua: “Há um facto eloquente, característico deste nosso século XIX, um fato que nenhuma fação ousa negar”. O fato básico da vida moderna, conforme a vê Marx, é que essa vida é radicalmente contraditória na sua base:

De um lado, tiveram acesso à vida forças industriais e científicas que nenhuma época anterior, na história da humanidade, chegara a suspeitar. De outro lado, estamos diante de sintomas de decadência que ultrapassam em muito os horrores dos últimos tempos do Império Romano. Em nossos dias, tudo parece estar impregnado do seu contrário. A maquinaria, dotada do maravilhoso poder de amenizar e aperfeiçoar o trabalho humano, só faz, como se observa, sacrificá-lo e sobrecarregá-lo. As mais avançadas fontes de saúde, graças a uma misteriosa distorção, tornaram-se fontes de penúria. As conquistas da arte parecem ter sido conseguidas com a perda do caráter. Na mesma instância em que a humanidade domina a natureza, o homem parece escravizar-se a outros homens ou à sua própria infâmia. Até a pura luz da ciência parece incapaz de brilhar senão no escuro pano de fundo da ignorância. Todas as nossas invenções e progressos parecem dotar de vida intelectual às forças materiais, estupidificando a vida humana ao nível da força material.

Tais misérias e mistérios instilam desespero na mente dos modernos. Alguns pensariam em “livrar-se das artes modernas para livrar-se dos conflitos modernos”; outros tentarão conciliar progresso industrial e retrocesso neofeudal e neoabsolutista em política. Marx, porém, proclama o caráter paradigmático da fé modernista: “Quanto a nós, não nos deixamos confundir pelo espírito mesquinho que continua a marcar todas essas contradições. Sabemos que para obter um bom resultado (...) as forças de vanguarda da sociedade devem ser governadas pelos homens de vanguarda, e esses são os operários. Eles são uma invenção dos tempos modernos, tanto quanto a própria maquinaria”.

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Logo, a classe dos “novos homens”, homens que são legitimamente modernos, conseguirá absolver as contradições da modernidade, superar as pressões esmagadoras, os terremotos, as misteriosas distorções, os abismos sociais e pessoais, em cujo interior todos os homens e mulheres modernos são forçados a viver. Tendo dito isso, Marx se torna repentinamente animado e conecta sua visão do futuro com a do passado — com o folclore inglês, com Shakespeare: “Nos signos que desnorteiam a classe média, a aristocracia e os pobres profetas do retrocesso, nós reconhecemos o nosso bravo camarada Robin Goodfellow, a velha toupeira que pode trabalhar a terra com rapidez, aquele valioso pioneiro — a Revolução”.

Os escritos de Marx são famosos pelos seus fechos. Mas, se o virmos como um modernista, perceberemos o impulso dialético que subjaz ao seu pensamento, animando-o, um impulso de final em aberto, que se move contra a corrente de seus próprios conceitos e desejos. Assim, no Manifesto, vemos que a dinâmica revolucionária destinada a destronar a burguesia brota dos mais profundos anelos e necessidades dessa mesma burguesia:

A burguesia não pode sobreviver sem revolucionar constantemente os instrumentos de produção, e com eles as relações de produção, e com eles todas as relações sociais. (...) Revolução ininterrupta da produção, contínua perturbação de todas as relações sociais, interminável incerteza e agitação, distinguem a era burguesa de todas as anteriores.

 Esta é provavelmente a visão definitiva do ambiente moderno, esse ambiente que desencadeou uma espantosa pletora de movimentos modernistas, dos tempos de Marx até o nosso tempo. A visão se desdobra:

Todas as relações fixas, enrijecidas, com seu travo de antiguidade e veneráveis preconceitos e opiniões, foram banidas; todas as novas relações se tornam antiquadas antes que cheguem a se ossificar. Tudo o que é sólido desmancha no ar, tudo o que é sagrado é profanado, e os homens finalmente são levados a enfrentar (...) as verdadeiras condições de suas vidas e suas relações com seus companheiros humanos.

Assim, o impulso dialético da modernidade se volta ironicamente contra seus primitivos agentes, a burguesia. Mas talvez não pare aí: com efeito, todos os movimentos modernos acabam por se aprisionar em semelhante ambiência — incluindo o próprio Marx. Suponhamos, como Marx o faz, que as formas burguesas se decomponham e que um movimento comunista atinja o poder: o que poderá impedir que essa

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nova forma social conheça o mesmo destino de seu predecessor, desmanchando no ar moderno? Marx cogitou dessa questão e sugeriu algumas respostas, que exploraremos mais adiante. Porém, uma das virtudes específicas do modernismo é que ele deixa suas interrogações ecoando no ar, muito tempo depois que os próprios interrogadores, e suas respostas, abandonaram a cena.

Se nos adiantarmos um quarto de século, até Nietzsche, na década de 1880, encontraremos outros preconceitos, devoções e esperanças; no entanto, encontraremos também uma voz e um sentimento, em relação à vida moderna, surpreendentemente similares. Para Nietzsche, assim como para Marx, as correntes da história moderna eram irónicas e dialéticas: os ideais cristãos da integridade da alma e a aspiração à verdade levaram a implodir o próprio Cristianismo. O resultado constituiu os eventos que Nietzsche chamou de “a morte de Deus” e “o advento do niilismo”. A moderna humanidade se vê em meio a uma enorme ausência e vazio de valores, mas, ao mesmo tempo, em meio a uma desconcertante abundância de possibilidades. Em Para além do bem e do mal, de Nietzsche (1882), encontramos uma explanação em que, tal como em Marx, tudo está impregnado do seu contrário:

Nesses pontos limiares da história exibem-se — justapostos quando não emaranhados um no outro — uma espécie de tempo tropical de rivalidade e desenvolvimento, magnífico, multiforme, crescendo e lutando como uma floresta selvagem, e, de outro lado, um poderoso impulso de destruição e autodestruição, resultante de egoísmos violentamente opostos, que explodem e batalham por sol e luz, incapazes de encontrar qualquer limitação, qualquer empecilho, qualquer consideração dentro da moralidade ao seu dispor. (...) Nada a não ser novos “porquês”, nenhuma fórmula comunitária; um novo conluio de incompreensão e desrespeito mútuo; decadência, vício, e os mais superiores desejos atracados uns aos outros, de forma horrenda, o génio da raça jorrando solto sobre a cornucópia de bem e mal; uma fatídica simultaneidade de primavera e outono. (...) Outra vez o perigo se mostra, mãe da moralidade — grande perigo — mas desta vez deslocado sobre o indivíduo, sobre o mais próximo e mais querido, sobre a rua, sobre o filho de alguém, sobre o coração de alguém, sobre o mais profundo e secreto recesso do desejo e da vontade de alguém.

Em tempos como esses, “o indivíduo ousa individualizar-se”. De outro lado, esse ousado indivíduo precisa desesperadamente “de um conjunto de leis próprias, precisa de habilidades e astúcias, necessárias à autopreservação, à autoimposição, à autoafirmação, à autolibertação”. As possibilidades são ao mesmo tempo gloriosas e deploráveis. “Nossos instintos podem agora voltar atrás em todas as direções; nós

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próprios somos uma espécie de caos.” O sentido que o homem moderno possui de si mesmo e da história “vem a ser na verdade um instinto apto a tudo, um gosto e uma disposição por tudo”. Muitas estradas se descortinam a partir desse ponto. Como farão homens e mulheres modernos para encontrar os recursos que permitam competir em igualdade de condições diante desse “tudo”? Nietzsche observa que há uma grande quantidade de mesquinhos e intrometidos cuja solução para o caos da vida moderna é tentar deixar de viver: para eles “tornar-se medíocre é a única moralidade que faz sentido”.

Outro tipo de mentalidade moderna se dedica à paródia do passado: esse “precisa da história porque a vê como uma espécie de guarda-roupa onde todas as fantasias estão guardadas. Ele repara que nenhuma realmente lhe serve” — nem primitiva, nem clássica, nem medieval, nem oriental — “e então continua tentando”, incapaz de aceitar o facto de que o homem moderno “jamais se mostrará bem trajado”, porque nenhum papel social nos tempos modernos é para ele um figurino perfeito. A própria posição de Nietzsche em relação aos perigos da modernidade consiste em abarcar tudo com alegria: “Nós modernos, nós semibárbaros. Nós só atingimos nossa bem-aventurança quando estamos realmente em perigo. O único estímulo que efetivamente nos comove é o infinito, o incomensurável”. Mesmo assim, Nietzsche não almeja viver para sempre em meio a esse perigo. Tão fervorosamente quanto Marx, ele deposita sua fé em uma nova espécie de homem — “o homem do amanhã e do dia depois de amanhã” — que, “colocando-se em oposição ao seu hoje”, terá coragem e imaginação para “criar novos valores”, de que o homem e a mulher modernos necessitam para abrir seu caminho através dos perigosos infinitos em que vivem.

Marshall Berman

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