"Estrutura do fait-divers", Roland Barthes, em Ensaios Críticos (1964)













“Eis um assassinato: se é político, é uma informação, se não é, é um fait-divers. Porquê? Pode-se pensar que a diferença aqui é entre o particular e o geral, ou mais exatamente, a do nomeado e do inominado: o fait-divers (a palavra ao menos parece indicá-lo) procederia de uma classificação do inclassificável, seria o refugo desordenado das notícias informes; sua essência seria privativa, ele só começaria a existir onde o mundo deixasse de ser nomeado, sujeito a um catálogo conhecido (política, economia, guerras, entretenimento, ciência, etc.); numa palavra, seria uma informação monstruosa, análoga a todos os factos excecionais ou insignificantes, enfim, inomináveis, geralmente classificados pudicamente sob a rubrica dos Varia, como o ornitorrinco que deu tanta preocupação ao infeliz Lineu. Esta definição taxonómica obviamente não é satisfatória: ela não conta a extraordinária promoção do fait-divers na imprensa de hoje (além disso, começa-se a chamá-lo mais nobremente de informação geral}; é melhor pôr em pé de igualdade o fait-divers e os outros tipos de informação, e tentar alcançar nuns e nas noutras uma diferença de estrutura, e não mais uma diferença de classificação.

Essa diferença aparece imediatamente quando comparamos os nossos dois assassinatos; no primeiro (o assassinato político), o evento (o assassinato) necessariamente se refere a uma situação extensa que existe fora dele, antes dele e ao redor dele: "política"; a informação não pode ser entendida aqui imediatamente, ela só pode ser definida na proporção de um saber externo ao acontecimento, que é o conhecimento político, por mais confuso que seja; em suma, o assassinato escapa do fait-divers cada vez que é exógeno, vindo de um mundo já conhecido; podemos então dizer que não tem estrutura própria, suficiente, porque nunca é mais do que o termo manifesto de uma estrutura implícita que lhe preexiste: não há informação política sem duração, porque a política é uma categoria transtemporal; da mesma forma, aliás, para todas as notícias vindas de um horizonte nomeado, de um tempo anterior: elas nunca podem constituir fait-divers; literalmente são fragmentos de romances, na medida em que todo o romance é em si um longo conhecimento do qual o acontecimento que aí se produz nunca é mais do que uma simples variável.

O assassinato político é, portanto, sempre, por definição, uma informação parcial; o fait-divers, ao contrário, é uma informação total, ou mais exatamente, imanente; ele contém em si todo o seu conhecimento: não é preciso saber nada do mundo para consumir um fait-divers; não se refere formalmente a nada além de si mesmo; claro, o seu conteúdo não é estranho ao mundo: desastres, assassinatos, sequestros, assaltos, acidentes, furtos, bizarrices, tudo isso remete ao homem, à sua história, à sua alienação, às suas fantasias, aos seus sonhos, aos seus medos: uma ideologia e uma psicanálise do fait-divers são possíveis; mas este é um mundo cujo conhecimento não é senão intelectual, analítico, elaborado em segundo grau por quem fala do fait-divers, não por quem o consome; no nível da leitura, tudo está dado num fait-divers; suas circunstâncias, suas causas, seu passado, sua questão; sem duração e sem contexto, constitui um ser imediato, total, que não remete, pelo menos formalmente, a nada implícito; é nisso que ele se assemelha à novela e ao conto, e não mais ao romance. Isso é a sua imanência que define o fait-divers.”

Foto: Laura Devushcat, tcc Irina Gubeva / Lara Denova / Laura Pomares– 1,62 m, 54 kg, 85-60-80, sapatos 37 ½, olhos e cabelos castanhos, nascida em 2000 em Cannes, França.

Na era moderna, a diferença entre Correio da Manhã e Expresso desaparece, com os comentadores e jornalistas deste último adotando o estilo do primeiro: opinião apressada e fait-divers mais palavrosos. 

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