Égloga Basto de Francisco de Sá de Miranda (11)
GIL
56
Falas-me nos animais,
a que nós brutos chamamos,
que guardam leis naturais;
nós outros não nas guardamos,
a isso obrigados mais.
Estes homens com quem tratam,
não homens, mas leões bravos,
por força tudo rematam;
os leões não te resgatam,
não te vendem por escravos.
57
Para que mandem nem rejam,
não vão as águas tingidas
do seu sangue; se pelejam,
não alçam forcas erguidas,
onde às aves manjar sejam.
Não tem repartida a terra
por marcos tam desiguais,
de sangue e fogo, por guerra;
um possui de serra a serra,
outro nada, ou dous tojais.
58
Espanto é desigual
da lei que entre si tem gralhas:
vendo ‘ua que passa mal,
decem gritando em batalhas,
não tratam entonces de al.
Ora te direi assi:
quem diz o que viu não mente;
Guar-te de cair aqui,
que verás passar por ti
o amigo e o parente.
59
Nunca ora ouvi um rifão
mais sabido e mais usado:
«que darem todos de mão
se jaz o carro entornado»
- os que vem, e os que vão.
Falo porém geralmente,
não tomes outra suspeita,
que é mui suspeitosa a gente;
o meu amigo fervente
não entra nesta receita.
60
Muitos dos vaus apalpei,
aos trabalhos me despus;
dês que cuidei e cuidei,
disse comigo: - Ora sus,
se erros fiz, erros paguei.
Cuida homem que bem escolhe
ás singelas só consigo;
não sei quem te a vista tolhe;
fujo como quem se acolhe
donde vê certo o perigo.
61
Andando só não me empecem
maus olhos, nem más palavras,
nem se apega, se engafecem
por outros fatos as cabras,
curo-as se me adoecem.
Por que tudo diga em soma:
não me temo que o cabrito
me esconda o vezinho e coma;
aqui, se paixão me toma,
posso cantar voz em grito,
62
Que me não ouça ninguém,
somente as aves, que tais
duas avantagens tem
destes outros animais:
voar, e cantar também;
ou ao som d’ água que cai,
rompendo pelos penedos,
dece ao fundo, ao alto sai:
ela que a grã pressa vai,
eles para sempre quedos.
63
Vês tu as minhas cabanas?
Se o vento se muda assi,
as revezo eu; Aldas, nem Anãs
não dão voltas por aqui,
mais leves que ao vento canas,
cantando dos seus solaus
(que me façam merecer
muitos destes vara-paus),
com seus olhos vaganaus,
bons de dar, bons de volver.
64
O sol de dia, as estrelas
de noite, quantas que vemos!
Nacem delas, põem-se delas…
Olhamos mais que entendemos;
e a lua, fermosa, entr’ elas,
que se renova e reveza,
ora um fio, ora mais chea,
ora em sua redondeza,
cada mês – com que certeza! –
semelha a da nossa aldea!
65
Do que ao meu gado sobeja
vou vivendo ano por ano;
pouco ou muito que ele seja,
a ninguém não faço dano,
e não se há ao povo enveja.
Parece vida, em verdade,
dos mastins, gado e pastor
como de comunidade;
com tal fome e frieldade,
tudo rege e manda Amor.
66
Do mais, dezia Pascoal:
Sabes que é o que nos come?
má cobiça que não al;
onde quer se mata a fome,
matam-se apetites mal.
Polo sol e pela neve,
natureza a grande madre,
qu’aos filhos também cho deve,
a tudo acudir se atreve,
por mais que este ventre ladre.
67
Meu gado levo, esse sigo,
que inda são mais embaraços
do que eu quisera comigo;
passei por tantos dos laços,
que olhar somente é perigo.
No meu samarrão metido,
que mais quero? Sou pastor,
cá nunca chega apelido
de fogo, nem de arruído:
mal se for, mal se não for.
68
Aqui por estes abrigos
(os mais debates deixemos)
virão ver-me os bons amigos;
ao sol nos entenderemos,
falando em tempos antigos;
e despois dos meses mil
quiçais inda dirá alguém,
olhando este meu covil:
- Por aqui cantava Gil
sem queixia de ninguém.
69
Quando tudo era falante,
pascia o cervo um bom prado;
aí veo o cavalo andante;
quis comer algum bocado,
pôs-se-lhe o cervo diante.
Outra razão lhe não deu
(que eram pacigos gerais)
salvo posso e quero o meu;
este meu e este teu
tanto há já que nos fez tais.
70
Vendo tam pouca prestança,
o cavalo, d’antes forro,
com desejo de vingança,
pedindo ao homem socorro,
por terra aos seus pés se lança.
Não pode, à justa querela,
deixar de se pôr no meo;
mas foi necessária a sela:
fez-se o homem forte nela,
toma a rédea, prova o freo.
71
Assi dão volta ao imigo.
O cervo, quando tal viu
- homem ao cavalo amigo –
deixou-lhe o campo e fugiu,
foi buscar outro pacigo.
O cavalo vencedor
corre o verde e corre o seco:
fora, fora, o contendor!
Ficou-lhe porém senhor,
não foi tanto o outro enxeco.
72
Quem há tal medo à pobreza,
tal à fome e frialdade,
que por ouro e por riqueza
dá a só rica liberdade,
e mais outrem que a si preza?
Se lhe vês herdades largas,
não lhe hajas enveja à troca,
que embaraçam as roupas largas,
faz sangue o freo na boca,
as esporas nas ilhargas.
73
Mas tu olhas o sol que anda,
amigo? É tarde; folga ora,
deixemos esta demanda
mal-avinda pera outra hora;
a cea fora mais branda.
Com dous peixinhos passaras
do rio, não d’almocreves,
que as vilas fazem tam caras;
beberas das fontes claras,
sonharas sonhos mais leves.
Fonte - bucolismo moderno - coisa fofa organizada verte águas
na floresta.
Comentários
Enviar um comentário