Qualquer imagem artístico-simbólica originada por um objeto físico particular já é um produto ideológico
“Os problemas da filosofia da linguagem adquiriram nos
últimos tempos excecional relevância e importância para o marxismo. Além da
ampla gama de setores importantes abarcados em seu avanço científico, o método
marxista aborda diretamente esses problemas e não pode avançar produtivamente
sem uma disposição especial para os investigar e resolver.
Em primeiro lugar, os verdadeiros fundamentos de uma teoria
marxista das ideologias – as bases para os estudos do conhecimento científico,
da literatura, religião, ética, etc. – estão intimamente ligados aos problemas
da filosofia da linguagem.
Um produto ideológico não só constitui uma parte de uma
realidade (natural ou social) como qualquer corpo físico, qualquer instrumento
de produção ou produto para o consumo, mas também, em contraste com estes
outros fenómenos, reflete e refrata outra realidade exterior a ele. Tudo que é
ideologia possui significado: representa, figura ou simboliza algo que está
fora dele. Em outras palavras, é um signo. Sem signos, não há ideologia. Um
corpo físico é igual a si mesmo, por assim dizer; não significa nada, apenas
coincide totalmente com a sua dada natureza particular. Neste caso, não há
nenhum problema de ideologia.
No entanto, um corpo físico pode ser visto como uma imagem;
por exemplo, a imagem da inércia natural e da necessidade encarnada nesse
objeto particular. Qualquer imagem artístico-simbólica originada por um objeto
físico particular já é um produto ideológico. O objeto físico converte-se em
signo. Sem deixar de ser uma parte da realidade material, esse objeto, até
certo ponto, reflete e refrata outra realidade.
O mesmo se aplica a qualquer instrumento de produção. Uma ferramenta
por si só é desprovida de significado especial; domina só uma função
determinada: servir para este ou aquele propósito. A ferramenta serve a este
propósito como o dado objeto particular que é, sem refletir ou representar
nenhuma outra. Mas uma ferramenta pode se tornar um signo ideológico, como, por
exemplo, o martelo e a foice que constituem a insígnia da União Soviética.
Neste caso, a foice e o martelo possuem um significado puramente ideológico.
Além disso, um instrumento de produção pode ser decorado ideologicamente. As
ferramentas usadas pelo homem pré-histórico estão cobertas de pinturas ou
desenhos, ou seja, com signos. É claro que este tratamento não converte em
signo uma ferramenta.
Também é possível realçar esteticamente uma ferramenta, de tal
modo que o seu desenho artístico se harmonize com a finalidade para a qual se
destina na produção. Neste caso, se efetua algo como uma aproximação máxima,
quase uma fusão de signo e ferramenta. Mas mesmo aqui detetamos uma clara linha
divisória conceptual: a ferramenta, como tal, não se torna um signo; o signo,
como tal, não se torna um instrumento de produção.
Qualquer bem de consumo pode se tornar um signo ideológico.
Por exemplo, o pão e o vinho são símbolos religiosos no sacramento cristão da
comunhão. Os bens de consumo, bem como as ferramentas, podem se combinar com
signos ideológicos, mas a combinação não apaga a clara linha divisória
conceptual entre eles. O pão é feito com uma forma particular; esta forma, não
é garantida apenas pela função do pão como um bem de consumo; também tem um
valor determinado, ainda que primitivo, como signo ideológico (por exemplo, o
pão com forma de um número oito ou de roseta).
Assim, em paralelo aos fenómenos naturais, aos equipamentos
técnicos e aos bens de consumo, existe um mundo especial: o mundo dos signos.
Os signos também são objetos materiais particulares; e, como
vimos, qualquer objeto da natureza, da tecnologia ou do consumo pode ser um
signo, adquirindo no processo um significado que vai além de sua
particularidade específica. Um signo não existe simplesmente como uma parte da
realidade, senão que reflete e refrata uma outra realidade. Portanto, ele pode
distorcer essa realidade ou lhe ser fiel, ou percebê-la a partir de um ponto de
vista especial, etc. Cada signo esta sujeito aos critérios de avaliação
ideológica (se é verdadeiro ou falso, correto, justo, bom, etc.). O domínio da
ideologia coincide com o domínio dos signos. Eles são equivalentes entre si.
Onde quer que um signo esteja presente também está a ideologia. Tudo que é
ideológico possui um valor semiótico.
No domínio dos signos – na esfera ideológica – existem
profundas diferenças: é, no fim de contas, o domínio da imagem artística, do
símbolo religioso, da fórmula científica, dos processos judiciais, etc. Cada
campo da criatividade ideológica tem a sua própria maneira de se orientar na
realidade e cada campo refrata a realidade à sua maneira. Cada campo domina o seu
próprio papel especial dentro da unidade da vida social. Mas o que coloca todos
os fenómenos ideológicos sob a mesma definição é o seu caráter semiótico.”
Valentin Volóchinov
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